Reflexões e Mensagens Equestres



                        Henrique Salles da Fonseca




«CHI VA PIANO…
… VA SANO E VA LONTANO»

Como quem diz cá pela nossa terra, «quem vai de vagar, vai são e vai longe». Pelo contrário, «as cadelas apressadas parem cachorros cegos».

O cavalo castanho era muito bonito, jovem e imponente, estava algo excitado com o movimento das éguas que por ali cirandavam no Largo do Arneiro. 

O seu dono, ufano, dizia-me lá de cima: - Henrique! Tudo ensinado em 4 meses!!! Ouvi e calei, Só falei para perguntar se podia ser de alguma utilidade quando o meu conhecido, sem cair, se apeou um pouco antes do que imaginara.

Não tive que ajudar porque um palafreneiro entrou de imediato em funções enquanto o dono do cavalo se queixava amargamente de por ali não haver onde desenrolar os cavalos antes de entrarem na manga da Feira. 

Isto passou-se há mais de 20 anos e até pode acontecer que, entretanto, já haja onde desenrolar a cavalaria. 

Mas o que está em causa não é a existência ou falta de espaços para guias.
O que interessa são os tais 4 meses de ensino. 
Em tão pouco tempo, não se pode mais do que «lambuzar» um cavalo jeitoso, É que ensinar verdadeiramente é bem mais demorado.

O cavalo ensinado tem necessariamente uma preparação física que lhe permite gerir comodamente o seu próprio peso nos três andamentos e isso exige uma linha de dorso castificada, sem soluções de continuidade desde as orelhas à ponta da garupa. 

E, sem exageros que façam perigar a estrutura muscular impreparada, esse trabalho em liberdade e à guia que permita o autoequilíbrio, nunca demora menos de 2 a 3 semanas se tudo correr da maneira mais favorável. 

Um mês não é excessivo para esta fase. Ficam a faltar 3 meses para o tal prazo a que se referia o meu conhecido apressado.

Segue-se a fase em que o cavalo, para além do seu próprio peso, vai ter que se habituar ao peso do cavaleiro passando a geri-lo confortavelmente também. 

Partindo do pressuposto de que o cavalo não «despeja» o cavaleiro, não será exagero imaginarmos um mês para que o novo equilíbrio seja confortável nos três andamentos. 

Sem repelões nem esgares, com harmonia e bonomia, sem suores brancos nem frios. E assim se passou a primeira metade do prazo do meu conhecido e o cavalo ainda só se limita a aceitar o cavaleiro.

Falta tudo o resto…

Esse resto que falta é muito até que se possa dizer que o cavalo está ensinado.

Admitamos 15 dias para que o cavalo perceba descontraidamente o que o cavaleiro lhe pede com as rédeas, com as pernas e que o trabalho na rua seja tão normal como no recinto fechado. Já só resta um mês e meio para os tais 4 do prazo do meu conhecido.

Nesse mês e meio, o cavalo vai aprender algumas delícias do passeio de lado a começar pelas ajudas laterais contrárias nos três andamentos. E se tudo correr às mil maravilhas, vai portar-se lindamente ao trabalhar entre outros cavalos que por ali deambulem.

E, sendo ele inteiro, como se comportará perto de éguas, de garranos ou poneys, de outros garanhões ?

Então, das duas, uma: ou se porta bem ou tem que ser ensinado «a ter maneiras». E se ele se assustar com qualquer coisa, estará em condições de ser imobilizado pelo efeito de Conjunto? É claro que não !

Já fora do tal prazo, faltam as ajudas diagonais da equitação intermédia e as laterais interiores da superior, faltam os «ares» mais ou menos olímpicos ou circenses, as passagens de mão a galope a tempos aproximados, as piruetas…

Passa tanta coisa para além dos tais 4 meses que o melhor é dizer que nesse prazo venceram em vez de convencerem, usaram martingalas torturantes, puseram a estrutura física do cavalo em perigo, abusaram do seu voluntarismo natural, fizeram malabarismos.

Lambuzaram o cavalo e enganaram o comprador desprevenido mas ensinar é que não o fizeram pela certa.
… cachorros cegos.

Fevereiro de 2020
Henrique Salles da Fonseca




Henrique Salles da Fonseca


PIAFFER


O " piaffer " é um trote cadenciado no mesmo terreno com um evidente momento de suspensão em cada diagonal.
Para além do método vulgarmente rude e medieval de ensinar o piaffer à mão e com chibata, há quem, civilizadamente, o ensine montado a partir da agitação da paragem, pelo encurtamento progressivo da passage ou a partir do passo cadenciado.
Pela agitação da paragem – parado, empurre o cavalo como se fosse para avançar e no momento em que ele inicia o movimento para diante, segure-o pela elevação da sua mão; repita até que ele perceba que lhe está a pedir que se mexa no mesmo local; se não tem mãos disponíveis, acaricie com a sua voz, ele perceberá perfeitamente; nada de esporas e, no máximo, uma leve indicação das chibatas. Muita atenção à acção dos ferros da embocadura nas comissuras e NUNCA sobre a língua. 

Festa e rédeas no pescoço em passo livre logo que ele tenha percebido o que se lhe pedia, o tal «mexer no mesmo terreno». 
A partir daí, confirmada a agitação da paragem, é só uma questão de diagonalização da dita agitação e de impulsão para que se tenha o desejado piaffer.

Tanto a diagonalização como o acréscimo de impulsão devem ser obtidos pelo «enforquilhamento» do cavaleiro (aquilo a que Beudant chama «chercher la profondeur de la selle», «procurar a profundidade do selim»), nunca pela espora nem pela chibatada. Focinheira larga para que tudo seja suave e o cavalo, caso queira, possa «cantar» com os ferros na boca. 
Com o aumento da impulsão, essa cantoria desaparecerá.

Pelo encurtamento da passage – por esta via, é fundamental que o cavalo vá  metendo as pernas debaixo da massa, sem o efeito pernicioso da chibata (e muito menos da chibatada), com um rassemblé progressivo pois se se lhe pede a concentração imediata, isso leva-o a contrair o dorso e a «amassar pão» em vez de saltar nas diagonais.

E é isso que abunda pelas carrières de dressage por esse mundo além… e até os há que conseguem aparecer nos Jogos Olímpicos. E não esquecer que, no encurtamento de que estamos a tratar, a acção dos ferros deve, mais do que nunca, exercer-se nas comissuras da boca e NUNCA sobre a língua. Isto, claro está, para exigir ao cavaleiro uma mão actuante na vertical por indicações sucessivas dos «dedos do piano» e NUNCA pela força contínua.

A partir do passo cadenciado – este era o método preferido pelo Tenente Coronel Valadas (e por mim). Ponha o cavalo a passo cadenciado e peça-lhe a saída a trote; no primeiro momento de suspensão, faça uma meia-paragem com a sua mão a actuar na vertical e os ferros nas comissuras – o cavalo tenderá a elevar o gesto em vez de o estender no que seria uma passada normal de trote. 

Ao longo de meia dúzia de exercícios destes, o cavalo já terá percebido o que se lhe pede e, se estiver descontraído, fará um mouvement sur place, o que é muito mais chique do que uma mobilização no mesmo terreno e, a partir daqui, siga-se o método da agitação da paragem.




SUBTILEZA E RUDEZA

O cavalo deve sair do «rollkur» com o mesmo alívio que nós devemos sentir ao retiramos o pé debaixo da roda grande de um tractor que nos atropelara.
Os adeptos desta malignidade ainda tentam confundir-nos com o «ramené outré» que poderemos traduzir por «reunião exagerada» e com uma célebre fotografia de Beudant com o seu cavalo “Robertsart”.

O próprio Mestre Nuno Oliveira tem uma fotografia ou outra com um determinado cavalo colocado aquém da vertical mas tratava-se de um exercício («ramené outré») muito raramente executado (os do rollkur fazem-no amiúde), apenas durante meia dúzia de passadas (os do rollkur são capazes de submeter os respectivos cavalos a essa sevícia durante voltas e mais voltas ao recinto de trabalho) e o Mestre Nuno realizava-o em grande ligeireza, nunca em tracção. Na fotografia de Beudant, pode-se notar alguma tensão nas rédeas mas o pescoço do cavalo está elevado e o garrote bem destacado (os do rollkur põem as respectivas vítimas com o queixo no peito) à custa da tracção das rédeas e sabe-se lá com que acção dos acicates que levam nas botas.


E a pergunta é: - Então, para que serve o «ramené outré»?
A resposta é: - Para induzir algum arredondamento do dorso, em especial naqueles cavalos que não tiveram a sorte de serem arredondados em liberdade e à guia e que, como tal, têm dificuldade em suportar o seu próprio peso acrescido do peso do cavaleiro e do esforço inerente ao exercício que lhe seja pedido.

O problema está em que se o «ramené outré» não for executado em ligeireza, durante poucas passadas e apenas muito raramente, ou seja, em subtileza, se transforma numa boçalidade prejudicial.

Portanto, se o cavaleiro não for uma luminária da equitação fina, o melhor que tem a fazer é não se «meter nessas cavalarias» e moldar o dorso do seu cavalo em liberdade (onde ele adquire o auto-equilíbrio com o máximo de naturalidade) ou à guia para não interferir muito com outros utilizadores do mesmo local de trabalho (mas sem mais do que uma guia não tensa e posta na argola da barbela do cabeção de apresentação, sem serrilhões nem cisgolas apertadas e com o chicote a varrer molemente o chão).

Nunca executei o «ramené outré» porque, sem pressas e com todo o tempo do mundo, os meus cavalos sempre tiveram os respectivos dorsos arredondados com naturalidade e porque não me considero suficientemente subtil para executar um exercício que facilmente se transforma numa rudeza. Mas já fui obrigado a ver essa miséria que é o rollkur.

Fevereiro de 2020

Henrique Salles da Fonseca



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O MIKADO E OS ALTERES

O cavalo - qualquer cavalo – é uma «ponte suspensa» sobre quatro pilares móveis a cujo «tabuleiro» chamamos dorso e cujo «cabo de suspensão» tem um ponto de amarração na nuca e outro no início da cauda.

Quis Deus que o cavalo tivesse relativamente pouca musculatura a meio do «tabuleiro» e logo foi aí que o homem decidiu sentar-se.

Donde resulta que, muitas das dificuldades com que cavalo e homem se confrontam, resultam de problemas de falta de preparação da estrutura dorsal do cavalo para suportar o seu próprio peso e, por agravante, suportar o acréscimo do peso do cavaleiro.

Partindo do pressuposto de que o cavalo já esteja desbastado e calmo, não deve o cavaleiro montar sem se certificar de que a musculatura dorsal está consolidada e em condições de suportar o próprio peso do cavalo. 
Para nos certificarmos dessa condição, deve o cavalo mostrar que se autoequilibra em liberdade sem martingalas que o condicionem, que não corre nem precipita qualquer dos três andamentos, que estende o pescoço com naturalidade (sem gestos de inversão) e sem acção persuasiva do chicote (apenas acção indicativa).

Quando o cavalo estiver na condição descrita no parágrafo anterior, está o cavaleiro autorizado a montar e a mostrar que o cavalo consegue suportar o acréscimo de peso sem constrangimentos. 
Enquanto houver contracções, esgares e assimetrias, deve o trabalho de musculação do dorso continuar até que o peso do cavaleiro seja um problema ultrapassado – rédeas tão soltas quanto possível, apenas orientando a extensão do pescoço e a preponderância dos músculos da crineira em desfavor dos da garganta.

Parto do pressuposto de que o cavaleiro está «a cavalo», ou seja, que tem a coxa descida, os cotovelos junto do tronco (nunca o passando para trás), as rédeas agarradas entre as falanginhas dos indicadores e os polegares, os «dedos do piano» soltos para poderem segurar ou ceder conforme as circunstâncias, as mãos juntas e com os polegares para cima (nunca virados um para o outro), assiette e músculos sartórios (os da parte interior da coxa e que vão da virilha ao joelho) completamente inertes.

Focinheira permitindo que se lhe possa meter um dedo ou dois entre ela própria e o cavalo, narinas completamente livres e lavadas, olhos sem remelas incomodativas (cuidado com as moscas e conjuntivites contagiosas), crinas penteadas e nunca embaraçadas na cachaceira, nas faceiras, na testeira ou na cisgola. Arreio cómodo para o cavalo (e, de preferência, para o cavaleiro também) e cilha ajustada convenientemente (nunca estranguladora) deixando uma mão travessa entre ela própria e o cotovelo do cavalo (a que habitualmente chamamos «codilho»). Ausência de esporas ou, no máximo, desempenhando uma função decorativa da bota.

Cavalo e cavaleiro de bem consigo próprios e com o mundo que os rodeia, podemos começar a tratar de coisas mais finas…

… tais como da atitude da mão do cavaleiro que deve actuar discretamente sempre de baixo para cima na vertical do garrote e tendencialmente cedendo no sentido das orelhas do cavalo (imperceptivelmente ao observador externo).

Bridão ou freio e bridão actuando nas comissuras da boca do cavalo, nunca directamente sobre a língua, eis a grande diferença entre um contacto subtil por indicações sucessivas (os «dedos do piano» sempre a mexer na expressão dos mestres franceses que diziam que “il faut toujours prendre et rendre”) e o apoio grosseiro que pela pressão contínua sobre a língua impõe ao cavalo uma postura que ele, muito provavelmente, se recusaria a assumir ou que, sem brutalidades, assumiria com graça. 
A acção suave e descontínua nas comissuras leva o cavalo a perceber que pode (e deve) gerir o seu próprio equilíbrio; a pressão contínua sobre a língua faz com que o cavalo não perceba quando age bem ou quando o cavaleiro quer algo diferente. Comunicar pelas comissuras resulta em descontracção, entendimento e cavalo cooperante; apoiar em contínuo sobre a língua é contracção, desentendimento e cavalo sob constrangimento.

Julgo ter focado com algum detalhe o que distingue o «ensino» e a «dressage», a equitação e a martelada equestre, a diferença entre o jogo do mikado e a bruteza dos alteres.

Mas isto são subtilezas que só a língua portuguesa permite pois em estrangeiro eles a tudo chamam o mesmo e por isso  mesmo tudo confundem.

Henrique Salles da Fonseca


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Hoje, conto pequenas histórias para aligeirar a conversa e entreter o leitor com temas leves.
Por ordem cronológica, começo com um caso que respigo do livrinho (apenas 68 páginas de texto) «ENSINO DO CAVALO DE SELA» de Etienne Beudant que o Mestre Miguel Távora me ofereceu quatro meses antes de falecer e em que o «cavalier mirobolant», no final, num parágrafo intitulado «Os dois grandes princípios sobre os quais tudo assenta», conta um episódio que lhe fora relatado pelo General L’Hotte e que acontecera nos tempos em que ele próprio, futuro General, era um jovem oficial.

Estaria o futuro grande Mestre a tentar debalde levar um cavalo a mudar de mão a galope quando o Conde d’Aure lhe disse: «Você emprega dez vezes mais força do que deveria usar. Ponha o cavalo na situação em que ele passe de mão por si próprio em vez de ser Você a obrigá-lo a passar de mão. Chegará ao objectivo que pretende limitando-se a pesar na sua anca do lado para que quer que o cavalo passe de mão. Não faça mais nada e o cavalo ajustar-se-á ao novo equilíbrio por si próprio passando de mão».

Conclusão de Beudant: - Portanto, para mudar de mão a galope, como em tudo o mais, mantenha o cavalo direito apenas pela acção da mão e deixe-o fazer o exercício por ele próprio.

A título de mera curiosidade – mas sem nenhum episódio específico para contar aqui – o outro grande princípio da equitação (claramente Bauchérista) é a decomposição das forças naturais que o cavalo multiplica pelo movimento.

* * *

A segunda história tem tudo a ver com a primeira mas passou-se tantas vezes que o melhor é contá-la como uma cena recorrente no picadeiro do Mestre Nuno.

- Oh Mestre ! Como é que faço para o cavalo fazer(e seguia-se a identificação do exercício que nós, alunos, queríamos executar).
- Põe o cavalo na posição em que ele não possa fazer mais nada.

A que se poderia, ou não, seguir alguma orientação mais concreta. Se o aluno tinha nível para perceber alguma explicação complementar, o Mestre dizia :

Se fosse um «nabo», muito possivelmente a conversa ficava por ali e o aluno que se desenvencilhasse.

Estranho, não é ? Talvez não seja assim tão estranho se soubermos que o Mestre ensinava os cavalos e os cavalos é que nos ensinavam a nós. Mais: quando éramos principiantes, tínhamos que descobrir onde estavam os «botões» do cavalo ensinado, quando se era já evoluído, os problemas surgiam num nível claramente mais interessante porque a pergunta resultava da «interpretação da partitura».

E neste nível superior, era uma delícia ouvir as explicações que o Mestre dava à Pureza São Lourenço e ao Miguel Távora, os seus alunos diletos, os non plus ultra. E a dileção era tal que o Mestre Nuno chamou Pureza à sua filha e Miguel ao seu segundo filho.




NIRVANA EQUESTRE

Estimadas Senhoras e Cavalheiros:

Este é o meu presente de Natal.

Imaginem que os vossos ombros tocam a garupa e a barriga toca as orelhas do cavalo; «assiette» descontraído e pernas caídas a obedecerem livremente à lei da gravidade; mão quieta na vertical do garrote, rédeas seguras pelos indicadores e polegares e os outros dedos, os «do piano», a actuarem livremente.
Admirem a paisagem que vos rodeia - as orelhas do cavalo estão lá no topo da cabeça dele, não precisam de ser constantemente vigiadas.
Empurrem o cavalo com o «assiette» e reservem as acções pontuais das pernas para os exercícios laterais; as esporas são elementos decorativos das vossas botas e as «cravaches» são instrumentos apenas indicativos e supletivos cuja maior função é a de impedirem que as vossas mãos puxem para trás.
Imaginem que estão sentados sobre uma bola e movam-na pela deslocação do vosso peso em qualquer sentido.
Se puderem, usem headphones e, a passo, ouçam o «Adagio» de Albinoni…
… a trote, ouçam a «Marcha Nupcial» de Mendelssohn…
… a galope, ouçam a «Marcha Radetzky» de Johann Strauβ I…
… e divirtam-se, cavalo e cavaleiro.
Votos de um feliz Natal e que 2019 vos traga este Nirvana equestre.
Dezembro de 2018




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